sábado, 2 de julho de 2011

Qualquer Dia - Experiência

Alcir Santos


Somos espécimes raros. Conseguimos chegar sãos e salvos, vivos e saudáveis, aos tempos atuais sem que o Estado cuidasse, como agora, de intervir a todo o momento na vida e nos direitos elementares dos cidadãos. Ontem proibiram os jegues da Lavagem do Bonfim, tradição que remonta aos primórdios da festa e causa de saborosas expressões do baianês como “Mais enfeitado(a) que jegue na Lavagem do Bonfim.” Hoje proíbem a tradicionalíssima guerra de espadas de Cruz das Almas.  Para amanhã a ameaça é aos cavalos dos “Encourados de Pedrão”. Ficarão proibidos de participar do desfile do 2 de Julho.

            A participação dos jegues na Lavagem, todos enfeitados e cheios de adereços, é costume que data do Século XVIII já que a festa começou em 1754. Pois bem em 2011 os jegues foram cassados, impedidos de desfilar. Dentre outros argumentos, sustentaram que “o jegue é um ser senciente” e como tal “tem capacidade de sentir dor, medo, alegria....” Perfeito. Por essas e outras é que certo Ministro de Estado asseverou que “cachorro também é gente.”

Fico a pensar como seria escrita a história do cristianismo se vivendo nos tempos bíblicos essas autoridades, ciosas dos direitos dos asnos, impedissem José de conduzir Maria e o Menino, montados num jumento, na fuga para o Egito. Note-se que a ordem de fuga veio dos céus: “...eis-que apareceu um anjo do Senhor em sonhos a José e lhe disse: Levanta-te, e toma o menino, e sua mãe, e foge para o Egito, e fica-te lá até que eu te avise, porque Herodes tem de buscar o menino para o matar.”(Mateus 2.13). E vejam que confusão dos diabos! O Filho do Homem, daquele que criou todas as coisas existentes na terra, animadas ou inanimadas, seria apanhado e morto pelos esbirros de Herodes simplesmente porque, caminhando, não conseguiriam sair dos limites da Judéia. E tudo isto em defesa da integridade dos jumentos que sequer teriam aquela cruz no lombo que, como reza a tradição, é a marca deixada pelo xixi feito pelo Menino Jesus.

Mas, nem tudo está perdido. Irreverência é coisa nossa. Galhofa desmoraliza. Inúmeros poderosos, ao longo do tempo, acabaram virando motivo de riso e deboche exatamente em razão de decisões e ordens que tais. Na Lavagem de 2011 não foi diferente. Pouco se falou dos repressores. A sensação da festa, o assunto mais comentado com inúmeras matérias nos meios de comunicação foi “Pagode”. O jegue enfeitado que aparecia na televisão tomando água mineral, comendo cenoura e em cima de uma carroça puxada pelo seu dono. Mais ainda, em torno dele um corpo jurídico pronto para intervir e contornar as situações com os fiscais que, registre-se, estavam se lixando para a tal ordem judicial. Resultado, na Lavagem do Bonfim de 2011 teve jegue enfeitado.  Tá documentado. Até na Internet.

A Guerra de Espadas ora proibida é a marca registrada do São João de Cruz das Almas. Durante grande parte do ano pessoas trabalham duro preparando as espadas (pedaços de bambu cheios de pólvora). Com a venda desse produto, que só tem mercado uma vez no ano, garantem o sustento da família por vários meses. Às vésperas dos festejos proibiram sumariamente as espadas. Golpe duro na tradição e nas finanças da cidade. Autoridades municipais intervieram, recorreram, ponderaram que fariam a guerra de espadas em lugares afastados, protegidos. Nada. Ordem judicial é para ser cumprida e ai de quem ousar o contrário. Sem problemas. Cruz das Almas festejou como manda a tradição com licor, canjica, forró e......Guerra de Espadas. Uma faixa, espécie de grito silencioso, ornamentou a cidade: “Guerra de Espada é só no São João. Crack e Cocaína o ano inteiro.” Será que os poderosos que querem acabar com as espadas de São João ouvirão o grito de desespero contra o crack e a cocaína? O tempo dirá......
 
E chegamos ao último ato. As festividades do 2 de Julho  começam no dia 30 de junho quando o fogo simbólico sai de Cachoeira e passa por diversas cidades do Recôncavo.  O desfile cívico -- e festa popular -- que se realiza em Salvador há mais de 180 anos é tradicionalmente puxado pelos Encourados de Pedrão. Esses cavaleiros se deslocam lá do seu município e aqui, vestidos a caráter, cheios de orgulho e garbo, abrem o desfile. Originalmente chamado de Voluntários da Pátria o grupo de cavaleiros comandados pelo Frei José Brayner foi incorporado às tropas do General Labatut a partir de 05.12.1822, conforme ofício do Conselho Imperial. Sua participação no desfile é parte da nossa história. Nas lutas pela Independência eles foram a cavalaria que o Brasil teve. Impedir os representantes dos Encourados de desfilar é descaracterizar a festa. Será que mais adiante vai proibir a cabocla?

Pois é. Segundo se propala, as autoridades já se movimentam no sentido de impedi-los de desfilar como forma de preservar a integridade dos cavalos. Não adiantou o Prefeito explicar que os animais são transportados até Salvador em caminhões e na prática só andam os poucos quilômetros do trajeto oficial. Nada disso. Os animais não podem ser submetidos a maus tratos e estresse. Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

Lendo e ouvindo essas coisas, bateu a fraqueza e o medo. E se nos proibirem de comer, o que é que vai ser de nós? Afinal de contas todos os alimentos, inclusive os de origem vegetal, vêm de seres vivos. E se resolverem preservar a integridade dos bovinos, tubérculos, folhas, aves, grãos e todos os outros componentes da nossa matriz alimentar? Assustado com a perspectiva só me resta recorrer às sagradas escrituras e, com Mateus 26.41, genuflexo, repetir: Vigiai, e orai para que não entreis em tentação. O espírito na verdade está pronto, mas a carne é fraca.”